A descoberta em 2018 de um conjunto de nove ossadas no atual bairro da Liberdade, em São Paulo, trouxe à luz evidências materiais da existência da primeira necrópole pública de São Paulo, o Cemitério dos Aflitos, também conhecido como Cemitério dos Enforcados. Ao que se sabe por documentos textuais municipais, o cemitério, no período de 1775 a 1858, era destino principalmente dos excluídos: negros e negras escravizados, pessoas pobres, indigentes e condenadas à forca. Se o Cemitério dos Aflitos era um território disperso dos desclassificados da sociedade paulistana, a Irmandade do Rosário, fundada em 1720, constituía-se como um território negro demarcado na cidade, onde escravos, forros e livres conviviam, faziam cerimônias fúnebres, festas e devoções religiosas, “quando essa parcela da população paulistana irrompia em conjunto pelas ruas, com seus trajes, adereços e sonoridade característicos” (WISSENBACH, 1988: 206-7).
Desde o século XVIII, aos territórios delimitados pela Igreja do Rosário e pelo Pátio do Rosário, em torno do qual habitavam os negros, somaram-se outros territórios mais fluidos, conectivos e fronteiriços, como as pontes, as ruas, os chafarizes e os largos da cidade de São Paulo. São recorrentes, nas atas da Câmara municipal, as menções à presença – regularmente classificada como inadequada e imoral – de negros e negras nas imediações dos chafarizes, por serem as fontes únicas de abastecimento de água no setecentos e oitocentos, sendo essa atividade realizada majoritariamente por escravizados (GASPAR, 1970).
Mulheres negras e pobres eram frequentes na paisagem urbana, em especial nas várzeas, onde executavam os serviços de lavadeiras. A iconografia de São Paulo é repleta de registros dessas personagens, seja em gravuras e pinturas do século XVIII ou em fotografias dos séculos XIX e XX, tendo como cenário uma das principais entradas da cidade, a Várzea do Carmo (OLIVEIRA, 1999). Durante esses séculos, até o princípio das retificações dos corpos fluviais paulistanos, as lavadeiras foram figuras centrais das margens do Rio Tamanduateí (MELO, 2017).
Outra faceta da inserção das mulheres escravizadas na paisagem urbana é a presença das quitandeiras nas ruas mais centrais da cidade, onde buscavam maior freguesia. Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias, essa categoria de ocupação seria principalmente empregada por mulheres remediadas, cuja única ou maior fonte de renda advinha desse comércio de rua (1985: 95). A localização dessas mulheres foi frequentemente questionada e alterada pelas autoridades municipais (BRUNO, 1954: 1.134-5), mas, por algum período, suas quitandas foram negociadas “nas casinhas que existiam junto à Igreja do Rosário” (MACHADO, 2004: 67). Ocupações comuns para os escravizados jornaleiros eram as variadas funções das atividades construtivas. Nas obras públicas de fins do século XVIII, nota-se que a tarefa mais penosa – a extração de pedras nos arredores da cidade – era realizada exclusivamente por esses homens, ainda que pudessem desempenhar outros ofícios nos canteiros, a depender de suas habilidades e treinamento (SANTOS, 2015: 161-78).
O conjunto dessas ocupações e práticas aponta para o trânsito e a presença de homens e mulheres escravizadas em espaços variados de São Paulo. O bairro da Liberdade, onde foram localizados os resquícios do Cemitério dos Aflitos, possui uma relação peculiar com a população negra, na própria origem de sua nomenclatura atual. A partir de 1821, o bairro passou a ser assim denominado, após o enforcamento, com pedidos de misericórdia ao romper da corda, do soldado negro Francisco José das Chagas, mais conhecido como Chaguinhas, que liderou uma revolta contra os atrasos do pagamento do soldo pela Coroa.
A virada do século XIX para o século XX na cidade de São Paulo coincide com o forte crescimento populacional, sobretudo depois de 1870, devido à chegada dos imigrantes na cidade e ao aumento da presença de pretos e pardos, vindos das fazendas do interior depois da abolição, em busca de trabalho. “Entre 1872 e 1890, a taxa anual de crescimento demográfico foi muito elevada, da ordem de 4,12%, e nunca antes conhecida (o Brasil crescia nesse período a 1,96%). De 1890 a 1900 o crescimento foi explosivo, de 14% ao ano” (MARCÍLIO, 2004: 267). Isso significa que a população da cidade de São Paulo, que em 1872 somava 31.385 pessoas, dos quais 62% eram brancos, 13%, pretos, 22% pardos e 3% amarelos, cresceu para 239.820 em 1900 (MARCÍLIO, 2004: 265-6).
O grande fluxo de trabalhadores negros que ingressou na cidade de São Paulo nesse período vai de encontro às políticas de branqueamento da cidade promovidas pela administração pública. No processo pós-abolição, negros e negras libertas na cidade sofreram uma política de segregação por parte do Estado, que lhes negou direitos como cidadãos (PASTERNIANI, 2016: 6). O esfumaçamento da memória do bairro da Liberdade, vincula-se a um processo maior de apagamento da memória da escravidão na cidade de São Paulo e no Brasil. O político e jurista brasileiro Ruy Barbosa de Oliveira mandou queimar documentos sobre a escravidão logo após a Proclamação da República (1889). No espaço urbano de São Paulo, vários esforços de ocultamento da presença dos negros foram empreendidos por diferentes governos: a destruição da Irmandade do Rosário em 1903; o desaparecimento dos locais de materialização da violência, como o pelourinho, a forca e o cemitério (LIMA, 2018: 3); a ornamentação de caráter asiático dada ao bairro da Liberdade; e a mudança do nome da estação de metrô para Japão-Liberdade.
Visando compreender as temporalidades nas quais operaram dinâmicas de apagamento e deslocamento das populações na cidade de São Paulo, as professoras da Escola da Cidade Amália dos Santos e Glória Kok desenvolvem, desde 2019, a pesquisa experimental “Arqueologia de São Paulo: o Cemitério dos Aflitos (1775-1858) e outros territórios negros da cidade de São Paulo nos séculos XVIII e XIX”. A pesquisa coletiva conta com as duas orientadoras e estudantes que vêm realizando investigações conectadas, a saber: um levantamento das ocorrências com menção à população negra nos livros das Atas da Câmara de São Paulo e na bibliografia central de pesquisa, cujo responsável é Victor Pacheco; e uma frente de articulações sensíveis, conduzida por Luara Macari, que se dedicou a iconografias e passagens dos textos camarários a fim de produzir uma narrativa literária e desenhos que explorassem as vivências e subjetividades dos corpos negros, escravizados, livres ou forros.
De início, partimos do trabalho com os registros camarários, fontes amplamente mobilizadas e problematizadas (Figura 3). Esses textos reproduzem a lógica da administração oficial sujeita à empreitada colonizadora ‒ entendida não apenas como limitada à condição colonial enquanto formulação política e jurídica ‒, segundo a qual a população feminina, racializada ou livre pobre não desfrutava do mesmo estatuto social e político que os colonos ou homens brancos. Na documentação, isso implica no aparecimento daqueles e daquelas como objetos e não sujeitos, o que, na prática, significa que são caracterizados na chave da criminalização, da violência, da doença, do desajuste, do empecilho.
Para além do questionamento sistemático da documentação oficial, outras vias de pesquisa foram construídas, perseguindo a possibilidade de reconstituir a subjetividade desses grupos subalternizadas, especialmente da população negra. Nesse sentido, nos aproximamos do trabalho de Ruth Guimarães, cujas investigações históricas e sociológicas articulavam-se a uma produção literária, tal como realizado em nossa pesquisa. Foi de especial interesse o romance Água Funda (1946), em que a autora explora de maneira complexa a sonoridade das falas de suas personagens, afastando-as do que seria uma narrativa erigida por meio da linguagem formal. O mesmo deu-se na novela criada pela aluna Luara Macari, como se vê em seu trecho inicial, reproduzido a seguir:
Figueiró era o nome da fazenda do sinhô. Ele era homem de berço, dono de mais de cinco légua de terra. Se parece, que mais palos interior, a família do sinhô tinha mais plantação. Nem havia de dar para contar quanto nego que se tinha por lá. Na fazenda do Figueiró só tinha um bocadinho de terra pros pretos fazer manufatura. Em Figueiró os negos da senzala faziam aguardente, farinha, um tanto de melaço, e enrolavam os fumo que se aviam d’outra fazenda. Mais o seu Figueiró tava fazendo riqueza mesmo comprando e vendendo cabeça de nego. — Luara Macari
O texto construído por Luara articulou suas vivências ‒ destacadamente, festas religiosas e apresentações musicais frequentadas pela estudante ‒ às ocorrências levantadas pela análise das atas camarárias, a partir do entendimento de que tais eventos carregam também em si permanências em relação ao tempo estudado, apreendidas na chave da resistência, numa abrangência de longa duração do quilombo, tal como sugerida por Beatriz Nascimento (1985). Segundo a sistematização do enredo desenvolvida pela aluna, a narrativa teve como mote a multa imposta à “preta forra” Josefa de Souza, em 1749, conforme ata, por se negar a vender pão, mesmo tendo licença para tal fim. A escolha de uma mulher negra como protagonista do texto foi profícua para a discussão sobre as imagens construídas pela historiografia e pela cultura brasileiras sobre essas pessoas, marcadas pela hiper-sexualização, pela subserviência e pelo excesso de energia, sempre à disposição (GONZALEZ, 1984). Por meio da literatura, Luara foi capaz de explorar e repensar essas interpretações.
No escopo original da pesquisa, engendravam-se ainda subjetividade e territorialidade, na compreensão de que os trânsitos e encontros nas ruas da cidade fizeram parte da constituição das identidades, transformações e manutenções da população negra escravizada e liberta. Nessa frente de trabalho, a análise das fontes e da iconografia, resultou na produção de gravuras e de uma cartografia da presença negra, tal como se observa nas Figuras 4 e 5 respectivamente.
Os resultados apresentados, que exploram diversas linguagens entre aquelas mais comuns na pesquisa histórica e outras próprias à exploração sensível, buscam corporificar as subjetividades da população negra nos períodos colonial e imperial, invisibilizadas e/ou esvaziadas pela violência das matrizes coloniais epistêmicas de poder. Dessa forma, a pesquisa experimental aqui detalhada alinha-se aos debates contemporâneos acerca da retomada da subjetividade e do questionamento da produção de conhecimento realizada exclusivamente a partir dos problemas e métodos da tradição eurocentrada. O trabalho com gravura e literatura foi especialmente importante para a aluna Luara Macari, pois possibilitou a experiência de “Escrever sobre o próprio corpo e explorar os significados do corpo”, tal como proposto por Grada Kilomba (2019: 63), sendo ela uma aluna negra que frequenta uma instituição composta quase exclusivamente por pessoas brancas, exceto na categoria de funcionários. Nesse formato de pesquisa, a estudante tornou-se “sujeito falante”, participante do coletivo em que se insere, tendo seus interesses reconhecidos como legítimos e podendo definir a agenda desse coletivo (KILOMBA, 2019: 74-75), num processo de descolonização epistêmica.
É notável, nesse sentido, que as duas frentes de pesquisa não foram estanques, isto é, não aconteceram ao mesmo tempo, e sim entrelaçadas. Em outras palavras, ambas fizeram parte da agenda coletiva de pesquisa, sendo determinadas e determinantes do processo de investigação, reconhecendo a relevância e os limites de métodos de pesquisa preexistentes ‒ incluindo das orientadoras ‒ e empreendendo propostas próprias. O modo de pesquisa escolhido mostrou-se ainda mais potente do que originalmente imaginado, à medida que possibilitou o entrecruzamento de temas, materiais e formatos de investigação entre as investigações. Além disso, aprofundou o processo de aprendizagem inerente à pesquisa, tanto para pesquisadores quanto para as orientadoras, em função da ampliação das referências acadêmicas, bibliográficas, de pesquisa e de vivência de cada membro da equipe.
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O presente ensaio é fruto de pesquisa experimental em desenvolvimento desde 2019 no âmbito da Associação Escola da Cidade. Intitulada “Arqueologia de São Paulo: o Cemitério dos Aflitos (1775-1858) e outros territórios negros da cidade de São Paulo nos séculos XVIII e XIX”, a pesquisa conta com duas orientadoras - as Profas. Dras. Amália dos Santos e Glória Kok -, e dois orientandos – os alunos Victor Pacheco e Luara Macari.
Referências Bibliográficas
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
GUIMARÃES, Ruth. Água funda. São Paulo: Editora 34, 2018 (1946).
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MACHADO, Maria Helena. Sendo cativo nas ruas: a escravidão urbana na cidade de São Paulo. In: PORTA, Paula (org.). História da Cidade de São Paulo. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p. 59-99.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos africanos, vivências ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-1880). São Paulo: Editora Hucitec, 1998.
Amália dos Santos é doutora e mestra pelo programa de pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, com estudos sobre a cidade, capitania e província de São Paulo, entre os séculos XVIII e XIX, com ênfase nas relações entre variados grupos sociais, formação do território e imaginário. Atualmente, é professora e pesquisadora na área de História da Escola da Cidade.
Glória Kok é doutora e mestra em história social pela FFLCH/USP e mestra em museologia pela USP, onde também se graduou. Fez pós-doutorados no Departamento de Antropologia da UNICAMP e no de Arqueologia do MAE/USP. Atualmente, é professora e pesquisadora na área de História na Escola da Cidade.